
Vinha de Pinhel a caminho de Mêda. O trajecto que escolhi, por ser o mais rápido e de boas estradas, passava no meio de algumas aldeias do concelho de Trancoso, daquelas que, pequenas em dimensão, praticamente despovoadas de almas, são velhas na idade e perdem as origens na bruma dos tempos.
Por aqui os Estios são estupidamente abrasadores que quase nos deixam sem poder respirar. Os Invernos são gélidos. Das outras estações quase que não vale a pena a referência pela temperatura, não fosse o verde dos campos e a queda suave das folhas castanhas que, lentamente, se deitam na terra, nas pedras das calçadas, por entre um ou outro suspiro de enfado ou de saudade de quem, quedo, assiste ao mesmo ritual da natureza., e não se dava conta da diferença.
Jovens não vi, apenas uma criancita que, ao ver-me parado dentro do meu automóvel e em conversa com um punhado de habitantes, os seus avós, se aproximou e, olhando para mim exibiu um sorriso cândido e desdentado, estendendo a caneca meia de leitei balbuciou: toma, bebe, é bom.
Foi neste quadro, simples, rural, bucólico, honesto, humano que dei por mim a pensar que vale a pena a vida, vale a pena saber quem são estas pessoas, saber o que os prende ali àquele...quase deserto, que se povoa apenas por altura do Verão, quando os filhos regressam de férias da França e doutros países e que na hora da partida fazem juras que aquele será o último ano que largam o resto da família e ficam, de vez, a dar vida às casas que, com o dinheiro dura e suadamente ganho, ainda não tiveram tempo de habitar.
Para outros, a vida tem o seu fim: ontem foi a enterrar um ancião desta aldeia que não fica nas estradas dos mapas de Portugal. A mágoa, a dor, a tristeza sentiam-se na atmosfera da aldeia de Vale do Seixo. O sino da Igreja, no mesmo ritmo de sempre, lembrava aos que ficaram, com as suas badaladas que se faziam escutar na aldeia de Carigas, logo a seguir, que a vida continuava, tinha de continuar...
Foi nesta toada romântica que, ao olhar para o lado, para a parede rude, num granito mal aparelhado de um baixo casebre, dei de caras com um dos símbolos que os cristãos-novos de Quinhentos insculpiam na pedra, mascarando assim a sua religião judaica. Trata-se da cruz no cimo do monte.
Fotografei o símbolo. O dono da Casa, guturando qualquer coisa fez-me entender que era, orgulhosamente, o dono daquela casa que, perante o interesse súbito da pessoa engravatada e de máquina fotográfica em punho, lhe pareceu ser por instantes um Palácio. Foi este o sentimento que o velho senhor, que não falava, exprimiu: nunca ninguém tinha mostrado tanto interesse naquela inscultura que ele já havia preenchido de tinta para melhor se fazer notar...
Junto da Igreja estava um homem, que distantemente, mas sem disfarçar a curiosidade, olhava de vez em quando para mim, para o meu andar pausado e inquisitório para tudo que fosse parede. Dirigi-me a ele e, pela informação já recolhida junto de uma prestável senhora, indaguei onde ficava a rua que tinha os ombrais e a torça da porta diferente das demais. "Ah.!!! Só se fôr aqui...mas isto não é uma rua, é uma quelha" - disse ele meio envergonhado daquela estreita e miserável canada que de um lado tinha casas todas em pedra e de escadas a desaguar nela. "Mas olhe que eu não sei do que fala", continuou ele. "É disto", disse-lhe eu já de olhos arregalados pela descoberta das tais pedras: estava perante um portal, não muito alto, em que à vista de todos exibia claramente uma torça e dois ombrais em granito polido pela mão do homem que, pelo manejo hábil do escopro, moldou uma entrada digna de uma outra qualquer casa, mas nunca daquela onde, entrincheirada por pequenas e reles pedras lhe enalteciam e lhe davam uma grandiosidade digna de museu.